Quem se importa se você vai à festa?
Quatro breves histórias sobre aprender a dizer mais sim do que não.
31 de dezembro de 2011, alguma casa, Chicago
Eu havia chegado aos Estados Unidos uma semana antes e viajado para virar o ano na cidade mais populosa do estado de Illinois. Era uma festa, com gente bebendo e música alta ao fundo.
Eu não sabia exatamente o que estava fazendo lá. Ensimesmado, só conseguia pensar que aquele lugar não era para mim. Eu não conhecia as pessoas, não entendia as músicas, sequer me considerava amigo da menina que havia me convidado.
Em dado momento, senti vontade de dançar. Música alta ritmada faz isso com meu corpo. Disse isso à minha companheira de viagem — mesmo que eu não a considerasse amiga, eu estava hospedado na casa dela em Columbus e passamos nove horas juntos num carro até Chicago, então alguma relação nós estávamos construindo.
Aliás, uma pausa na história para comentar essa coisa de amizade. Eu era um trouxa em 2011–2012. Conheci a Danielle quando a turma dela veio à Universidade Federal de Goiás (UFG), onde eu fazia mestrado. Era um projeto de intercâmbio e eu fui intérprete voluntário para um grupo de vinte a trinta estudantes estadunidenses. Quando apareceu a oportunidade de viajar à universidade delas, a Danielle prontamente me ofereceu um quarto durante os três meses que eu ficaria nos Estados Unidos. Ela me acolheu, me mostrou a cidade, ajudou a abrir conta no banco, chamou para viajar e nem brigou comigo quando quebrei o cano da pia do banheiro. Digo que eu era um trouxa porque achava que precisava de alguma coisa além disso tudo — e certamente havia muito mais — para considerar alguém como “amigo”. Ainda bem que a gente cresce.
Danielle me ouviu e perguntou:
– Ninguém vai olhar se você dançar.
Ela tinha razão. Mesmo assim não dancei. Fiquei tímido, muita gente olhando, o salão vazio, nenhum álcool correndo no meu corpo para desobstruir os medinhos. Medo do quê, não sei dizer.
O que importa nessa cena é que eu quis e deixei de fazer.
2 de dezembro de 2009, boate Diesel, Goiânia
Eu estava tentando uma vaga para o mestrado em Cultura Visual na UFG. A primeira etapa consistia numa prova, que consegui fazer em Porto Alegre com a supervisão de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A segunda etapa foi avaliação do projeto de pesquisa. Quando este foi aprovado, precisei ir até Goiânia para a entrevista com os professores do programa de pós-graduação.
Mudar de Porto Alegre para Goiânia estava nos planos, mas eu não fazia ideia do que significava. Por isso, decidi aprender um pouco mais sobre a cidade e sua vida noturna. Fui a uma boate gay chamada Diesel — que só descobri com a ajuda de uma boa amiga de Porto Alegre, pois meu acesso à internet estava ruim em Goiânia (estamos falando de 2009, ou seja, eu ainda não tinha um smartphone) e não pesquisei nem me planejei (um hábito ruim que ainda hoje sigo fazendo).
Eis que cheguei à boate no horário de abertura. Ela estava vazia, é claro, mas pelo menos aproveitei a promoção e entrei sem pagar. Conforme pessoas começaram a chegar, fui me sentindo menor. Tinha gente bonita, tinha gente faladeira, tinha grupos abraçados dançando em conjunto. E ali no canto, pertinho da porta do banheiro, tinha um Tales sentado.
Tentei usar a tequila para me libertar das travas que me mantinham sentado, mas nem duas nem três shots foram suficientes para me colocar na pista dançando. Eu estava intimidado pela perspectiva de estar do outro lado do país prestes a me lançar em uma vida nova.
Verdade seja dita, a gente está prestes a se lançar em uma vida nova a cada passo que damos, mas em geral acreditamos na ficção de que as coisas são e continuarão estáveis. Daí quando de fato vem a mudança, choramos.
Um rapaz saiu do meio da pista de dança e veio falar comigo. Achei-o feio, pensei que queria ficar comigo, me armei de nãos antes mesmo de ouvir o que ele tinha a dizer.
– Você está sozinho?
– Estou — respondi com todo o gelo que conseguia imprimir em uma palavra. A tequila ajudava a colocar essa frieza gauchesca em ação.
– Então vem cá, deixa eu te apresentar o pessoal — nem deu tempo de negar, ele já estava pegando na minha mão, me puxando para o meio da pista de dança e me apresentando para pessoas aleatórias.
Até hoje não lembro de nenhuma dessas pessoas, mas não me saiu da cabeça a disposição de um completo estranho em me colocar em contato com outros seres humanos.
6 de junho de 2016, sede da Perestroika, São Paulo
Eu era voluntário no Creative Mornings (CM) em São Paulo desde abril e já estava confortável com a estrutura do evento: um café da manhã para pessoas conversarem seguido de uma palestra seguida de mais conversa. Enquanto circulava pelo espaço da @Perestroika, vi a Luisa ali parada com cara de perdida.
Lembrei de mim em Goiânia, seis anos antes.
Fui até ela e perguntei se estava sozinha. Se conhecia o evento. Qual era o seu nome. O que estava procurando. O que fazia da vida.
Passamos o resto do evento conversando. Se eu fosse hétero e acreditasse em comédias românticas, poderia ter nascido aí um filme. Mas eu acredito em novos hábitos positivos na vida e pelo menos isso de fato nasceu, além de mais uma amizade (e mais uma voluntária para o CM, também).
Em homenagem ao moço que me tirou do isolamento na festa e aos bons resultados de trazer pessoas legais para rodas com outras pessoas legais, assumi uma missão: sempre que estou em um evento social e percebo alguém isolado em um canto, vou lá e converso. Vou lá e chamo para conhecer outras pessoas. Vou lá e encho o saco até a pessoa não estar mais sozinha.
Para ficarmos sozinhos, já temos nossa própria casa. Ou bibliotecas, parques, noites de caminhada na chuva com fones tocando Radiohead, essas coisas.
11 de fevereiro de 2017, bar Samurai, São Paulo
Se dançar já costuma ser um desafio, imagina cantar no karaokê. Era nisso que eu estava pensando durante a despedida de solteiro do melhor amigo do meu namorado.
Antes de saí de casa, me ocorreu o pensamento de que não cantaria. Eu me conheço e sei que cumpro os bloqueios que me proponho, então decidi mudar o pensamento. Se rolasse vontade, aí eu cantaria. Um pouco diferente, mas o bastante para que o não deixe de ser uma certeza.
Pausa para explicar: essa minha coisa de sair de casa com bloqueios prontos é incrível. Uma vez fui a um encontro do Ninho de Escritores no Centro Cultural São Paulo e estava certo de que voltaria para casa imediatamente após o término. Não havia nada em particular para fazer em casa, mas achei que estaria cansado e que seria uma boa ideia ir descansar, até porque já seria tarde. Eis que no final do encontro os participantes sugeriram que fôssemos a um bar. Eu nem precisei pensar: disse que não, que precisava voltar para casa. Entrei no metrô querendo voltar, cheguei em casa me remoendo por não ter ido ao bar. Quando coloco um impedimento na cabeça, preciso gastar muita energia para tirá-lo. Enquanto não aprendo a mudar isso, vou aprendendo a planejar menos impedimentos.
Se rolasse vontade, eu cantaria. Pois até quase meia noite ainda não havia rolado essa vontade e tudo estava bem.
Mas daí o Kelvin, meu digníssimo, disse:
– Vamos cantar uma música juntos.
Se eu tivesse programado minha recusa, nada me faria cantar. Mas ali havia a oportunidade de compartilhar um momento com meu namorado e ser feliz. Tudo bem que isso envolveria subir num palco com um microfone e cantar uma versão desafinada da Taylor Swift, mas quem se importa?
Essa é a grande pergunta deste texto: quem se importa?
Porque quando deixei de dançar lá nos Estados Unidos, ninguém se importou. Se eu tivesse dançado, talvez outras pessoas se inspirassem e viessem dançar junto comigo. Se eu tivesse dançado, talvez outras pessoas tivessem uma imagem para rir pelo resto da vida. Nunca vou saber.
Porque quando o moço me chamou para conhecer pessoas em Goiânia, ele se importou e com isso eu me importei. Eu tive boas experiências naquela noite porque alguém se dignou a interromper o fluxo do não.
Porque quando eu convidei Luisa para conversar e fiz disso um hábito, na verdade o que estava fazendo era criar uma corrente do sim. O que estou dizendo quando vou até alguém sozinho num canto é: eu me importo.
Porque quando Kelvin me chamou para cantar com ele, o que estava dizendo era: eu me importo que você esteja aqui e quero compartilhar uma experiência.
Pode ser difícil, pode rolar medo, pode dar tudo errado, podem todos rir de mim, mas pode acontecer. Se algo acontece, a gente tem com o que trabalhar, com o que aprender, o que mudar.
Última pausa: sempre alguma coisa está acontecendo, mas com frequência eu me permitia não deixar acontecer coisas que me trouxessem alegria. É disso que estou falando: dizer sim para acontecimentos que me façam caminhar na direção do que desejo experimentar.
No final, ninguém riu de mim. Não que eu saiba, pelo menos. E mesmo que tenha rido, terei proporcionado diversão a outras pessoas. Enquanto cantava, várias pessoas cantavam junto em suas rodas de amigos. Enquanto cantava, eu não estava nem um pouco interessado em saber quem mais estava lá além de mim e de meu namorado no palco.
Naquele momento, importava que eu estava ali vencendo um medo antigo. Naquele momento, importava que eu estava ali com alguém que eu amo.
Porque eu me importo se vou à festa (e ele também). E isso basta para o sim valer mais do que o não.